Nos velhos tempos da URSS, os membros
dos partidos comunistas ao redor do planeta praticavam uma espécie de culto ao
proletário, não raro acompanhado por um correlato desprezo à intelligentsia. Nesse sentido, os
intelectuais do partido, provenientes da classe média burguesa, entregavam-se
alegremente a rituais periódicos de auto-humilhação perante a classe
trabalhadora, numa tentativa canhestra de expiar sua culpa de classe
(substituta, na consciência revolucionária, da culpa judaico-cristã). “A
desgraça do burguês não é só estar dividido por dentro. É oferecer uma metade
de si mesmo à crítica da outra metade”, escreveu François Furet (1927-1997)
em O Passado de Uma Ilusão.
O escritor húngaro Arthur Koestler
(1905-1983) descreve esse fenômeno ao lembrar de seu passado como militante do
Partido Comunista da Alemanha. Naquele ambiente, diz ele, os intelectuais eram
tolerados. Não faziam parte do movimento por direito, mas por necessidade. Como
postulara Lenin, a Rússia carecia da expertise dos membros da intelectualidade
pré-revolucionária. Mas o líder bolchevique não lhes atribuía qualquer valor
intrínseco. Eram-lhe úteis como agentes de propaganda apenas, e só enquanto
seguissem fielmente a cartilha do partido.
Em contraposição à ralé intelectual,
a mitologia soviética colocava o proletariado no topo da hierarquia. O
proletário ideal – consagrado na iconografia com ombros largos, imensos pés e
mãos, olhar sereno e largo sorriso – era o trabalhador do chão de fábrica, a
exemplo dos metalúrgicos de Putilov ou os petroleiros de Baku. Cientes de que
jamais seriam proletários legítimos, os intelectuais de classe média
esforçavam-se por imitá-los, pondo nisso tanto empenho que alguns chegavam a
enegrecer artificialmente as unhas, numa simulação de marcas de fuligem. Nada
podia ser dito ou escrito que não fosse imediatamente compreendido pelo
trabalhador da fábrica. Nas palavras de Koestler:
“Abandonávamos nossa bagagem
intelectual qual passageiros de um navio tomado pelo pânico, até que fosse
reduzida ao mínimo estritamente necessário de frases feitas, clichês dialéticos
e citações marxistas (…) Ansiávamos por nos tornar simplórios e obtusos. A
autocastração intelectual era um pequeno preço a pagar pela obtenção de alguma
semelhança com o camarada Ivan Ivanovich [o proletário-modelo]”.
As assembleias do partido costumavam
começar com uma palestra sobre eventos políticos correntes, proferida por
alguém do alto escalão, que estabelecia a “linha partidária”. Seguia-se então
uma discussão, que, na novilíngua comunista, significava a repetição, em
variados estilos e fraseologia, da linha partidária definida de antemão. Um
proletário qualquer tinha sempre a última palavra, repetindo a seu modo, e em
tom arrogante, a orientação oficial. Relata Koestler: “Escutávamos-no em
silêncio solene, num murmurar de aprovação, e o líder partidário, encerrando os
trabalhos, dizia ter sido o camarada X quem formulara o problema nos termos
mais adequados e concretos”.
No Brasil da chamada
redemocratização, um tipo parecido de pusilanimidade existencial demonstrou a
classe falante brasileira de esquerda para com o então líder sindical Luiz
Inácio Lula da Silva, atitude que, por incrível que pareça, sobrevive em parte
considerável da imprensa, da academia e do meio artístico. Mesmo aqueles que
não o consideram vítima de perseguição política esforçam-se ao máximo por
preservar uma imagem grandiosa e superdimensionada do detento, que por tantos
anos foi o símbolo aglutinador da esquerda nacional.
“Hoje é um dia triste para o Brasil”
foi uma frase repetida a cada meia hora por jornalistas românticos de esquerda,
enquanto, do lado de fora dos estúdios e redações, a maioria do país explodia
em fogos de artifício e loas ao juiz Sergio Moro, o homem que pôs na cadeia um
dos criminosos mais poderosos do país. Lamentando o fim do mito que eles mesmos
criaram, esses formadores de opinião aferram-se às ilusões políticas de
juventude como a um poste em meio à enchente. Para eles, era como se o velho
sonho do marxismo inzoneiro tivesse acabado, dando início a um embaraçoso e
traumatizante período de vigília.
Em artigo para O
Globo intitulado “Um herói do povo”, o cineasta Cacá Diegues condensou o
sentimento dos intelectuais de sua geração em face do político preso (algo
muito distinto de um preso político, como os que há em
Cuba e na Venezuela). “Lula foi um sonho que todo brasileiro acalentou um dia”,
escreve Diegues, para quem, ademais, o corrupto condenado é um “gênio político”
com um “projeto lindo”.
O cineasta confessa ter se
decepcionado um pouco com o seu outrora “herói na luta contra a ditadura, na
organização dos operários em São Paulo, na criação de um novo partido popular,
reformista e ético”, por haver se deixado seduzir pelo poder e pela riqueza –
essas “vantagens classistas” –, tornando-se, assim, um “político burguês”
qualquer. Apesar de tudo, Diegues não o considera um bandido, e não o queria
preso. A lei é igual para todos, concede, mas seria o seu herói igual a Sérgio
Cabral, Eduardo Cunha ou Geddel Vieira Lima? “Sinceramente, não acredito nisso.”
Cacá Diegues está certo,
evidentemente. Seu herói não é igual a Cabral, Cunha e Geddel. É muito pior,
uma vez que o esquema de corrupção por ele montado transcendeu as fronteiras
nacionais, sempre visando à construção de uma ditadura conduzida por ele e seus
companheiros. Quem não lembra de quando, por exemplo, em visita a Cuba no ano
de 2010, o ora encarcerado tratou com desprezo e escárnio os presos políticos
do regime de seu aliado e amigo Fidel Castro, que protestavam mediante greve de
fome? Ao contrário do que vem fazendo nos últimos anos, desde que a Lava Jato
se pôs a lhe morder os calcanhares, à época ele pediu respeito às decisões do
sistema de Justiça da ditadura castrista. E saiu-se com esta infame declaração:
“Temos de respeitar a determinação da Justiça e do governo cubanos de deter
as pessoas em função da legislação de Cuba. A greve de fome não pode ser
utilizada como um pretexto de direitos humanos para liberar as pessoas. Imagine
se todos os bandidos presos em São
Paulo entrarem em greve de fome e pedirem liberdade” (grifos meus).
Ironia do destino: o homem que zombou
dos presos políticos cubanos, tratando-os como bandidos, hoje é um bandido
tentando fazer-se passar por preso político. Mas, ao contrário do que supõe o
sentimentalismo piegas da classe falante nacional, aquilo que o detento é hoje
sempre esteve em potência no fundo de sua alma tirânica e corrompida, tão
perversa a ponto de se autoproclamar a mais honesta do país.
As cenas degradantes a que todos
assistimos nos últimos dias 6 e 7 de abril, e que tiveram o Sindicato dos
Metalúrgicos do ABC por cenário, não representam o triste e inesperado fim de
uma biografia nobre, mas o corolário inevitável de uma vida de
iniquidades. “Tel qu’en Lui-même enfin l’éternité le
change” (“E a eternidade, enfim, transforma-o no que sempre foi”), diz o
célebre epitáfio que Mallarmé dedicou a Edgar Allan Poe. Poderíamos
parafraseá-lo para o caso do mentor do petrolão: Tel
qu’en Lui-même enfin la captivité le change (E a prisão, enfim,
transforma-o no que sempre foi).